domingo, 23 de novembro de 2008

LIBERDADE

Estado mínimo

“Então os anciãos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá, e disseram-lhe: Eis que já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos pois agora um rei sobre nós, para que ele nos julgue, como o têm todas as nações.
Porém esta palavra pareceu mal aos olhos de Samuel, quando disseram: dá-nos um rei, para que nos julgue. E Samuel orou ao Senhor. E disse o Senhor a Samuel: Ouve a voz do povo em tudo quanto te disserem, pois não te têm rejeitado a ti, antes a mim me tem rejeitado para eu não reinar sobre eles. Conforme a todas as obras que fizeram desde o dia em que os tirei do Egito até ao dia de hoje, pois a mim me deixaram, e a outros deuses serviram, assim também te fizeram a ti. Agora, pois, ouve a sua voz, porém protesta-lhes solenemente, e declara-lhes qual será o costume do rei que houver de reinar sobre eles.
E falou Samuel todas as palavras do Senhor ao povo, que lhe pedia um rei. E disse: Este será o costume do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos, e os empregará para os seus carros, e para seus cavaleiros, para que corram adiante dos seus carros. E os porá por príncipes de milhares e por cinqüentenários, e para que lavrem a sua lavoura, e seguem a sua sega, e façam as suas armas de guerra e os petrechos de seus carros. E tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras, e padeiras. E tomará o melhor das vossa terras, e das vossas vinhas; e dos vossos olivais, e os dará aos seus criados. E as vossas sementes, e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus eunucos e aos seus criados. Também os vossos criados, e as vossas criadas, e os vossos melhores mancebos, e os vossos jumentos tomará, e os empregará no seu trabalho. Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe servireis de criados. Então naquele dia clamareis por causa do vosso rei, que vós houverdes escolhido; mas o Senhor não vos ouvirá naquele dia.
Porém o povo não quis ouvir a voz de Samuel; e disse: Não, mas haverá sobre nós um rei. E nós também seremos como todas as outras nações; e o nosso rei nos julgará, e sairá adiante de nós, e fará as nossas guerras.
Ouvindo pois Samuel todas as palavras do povo, as falou perante os ouvidos do Senhor.
Então o Senhor disse a Samuel; Dá ouvidos à sua voz, constitui-lhes rei. Então Samuel disse aos filhos de Israel: Vá-se cada qual à sua cidade.” Livro de Samuel, capítulo 8, versos 4 a 22.
“ Então disse Samuel a todo o povo: Vedes já a quem o Senhor tem elegido? Pois em todo o povo não há nenhum semelhante a ele. Então jubilou todo o povo, e disseram: Viva o rei! “ Livro de Samuel, capítulo 10, verso 24.

Durante séculos, os israelitas não tiveram um governo central. Moisés não lhes legou uma legislação monarquista mas, pelo contrário, estabeleceu que os assuntos deveriam ser resolvidos localmente pelos anciãos de cada cidade, com autoridade sobre as vilas no seu entorno que dela dependiam para defesa militar. Apenas em casos de dúvidas jurídicas maiores as questões deveriam ser levadas aos sacerdotes (ou ao juiz). Não existia uma organização estatal responsável pela administração ou justiça. O Juiz era simplesmente um cidadão comum, reconhecido como líder militar quando as tribos se uniam contra um inimigo externo, formando um vasto exército não profissional, e servia também de árbitro nas questões jurídicas controvertidas que lhe eram levadas (ele não as chamava para si).
Mas, espantosamente, tal nação de estrutura civil extremamente leve e aparentemente desconexa, tinha uma legislação com forte ênfase na justiça objetiva e na proteção aos mais fracos. sem nenhum auxílio de qualquer estrutura burocrática. A Lei Mosaica visava possibilitar a qualquer cidadão israelita recuperar-se economicamente, sendo auxiliado por seus concidadãos, evitando que caísse na miséria. A previsão da Lei era tão ampla, que Moisés declara, conforme o Eterno o inspirou: “não haverá no meio de ti pobre” (se tal Lei fosse cumprida). Espantoso ainda é que tal proteção pudesse existir sem regulação de preços ou controle dos meios de produção pelo Estado (e, em tempos antigos, haviam estados que controlavam os meios de produção, e eram justamente os estados que mais oprimiam os corpos e as consciências dos homens).
Mas a união de uma Lei tão previdente quanto à solução do problema da pobreza, com uma estrutura civil tão leve, parece inacreditável ao leitor moderno. Estamos acostumados a ver as pessoas que se arrogam defensores dos mais fracos, defendendo um estado mais e mais “atuante”, abrangente, totalitário mesmo, ao ponto de se imiscuir na intimidade do pensamento das pessoas, de controlar toda a crítica (seja pela ação direta, seja pela patrulha do pensamento “politicamente correto”). Parece espantoso para nós, pobres reféns da chantagem do vitimismo, a existência de uma nação ao mesmo tempo libertária e defensora dos pobres. Tão espantoso, que não conseguimos enxergar isso, mesmo lendo a Bíblia. Simplesmente não faz parte de nosso universo mental. Que pena …


Perdendo


Numa confrontação entre o Pentateuco, juntamente com o início do Livro de Samuel, contra o livro dos Juízes, parece haver uma forte oposição de idéias entre os seus autores. Os dois primeiros parecem exaltar a estrutura civil leve. Já o livro dos Juízes, fala sobre desordem e desregramento moral do povo, seu desvio da Torah, e as derrotas sob poderes estrangeiros. Finalmente, um Juiz botava ordem na casa e derrotava os inimigos externos. Muitos casos escabrosos, são seguidos da seguinte frase “não havia rei sobre Israel, e cada um fazia o que parecia bem aos seus próprios olhos”. A impressão causada, numa leitura descuidada, é que o escritor lamenta não haver monarquia naquela época.
Mas uma leitura mais atenta de Samuel, indica que o Eterno lamente que ELE tenha sido rejeitado como Rei. Em outras palavras, durante todo o período dos Juízes, Ele não foi aceito como verdadeira autoridade. Seu governo poderia ser discernido, se os israelitas quisessem, no Ensino (Torah) de Moisés, na sabedoria dos antigos, no bom senso, na disciplina mental, na voz da consciência. Apenas quando a situação apertava, o povo se voltava para o Eterno, e surgia um Juiz que derrotava os inimigos e levava-os à obediência à Torah. Sentiam-se desgovernados, pois não governavam seus próprios desejos, mas faziam o que parecia bom aos seus próprios OLHOS, não à sua CONSCIÊNCIA. Por sentirem-se desgovernados, queriam sobre si um rei, vistoso como os de outras nações. Por não entenderem que seu desgoverno era um problema interno, procuraram um governo forte fora de si.
Mas qual foi o resultado? Após apenas três reis governando as tribos unidas, elas se dividiram em dois estados que competiam entre si. Mesmo os melhores reis representavam pelo menos dois problemas:
Eram custosos, pois o sustento do aparelho de estado não é barato.
A existência de um governo central tirava do povo parte de suas responsabilidades. Num certo sentido, um governo forte infantiliza os cidadãos. Prova disto era o fato do povo obedecer ou desobedecer os preceitos éticos e espirituais da Torah conforme os seus reis os obedeciam ou deixavam de obedecer. Suas consciências deixaram de ser árbitro, eles a entregaram aos seus governantes … qualquer semelhança com o que vemos no mundo atual não é mera coincidência.
Quanto aos piores reis, promoviam homicídios, roubos, sacrifícios rituais de crianças, corrupção, idolatria, enfim, eram uma desgraça completa. No final, os dois reinos acabaram sendo conquistados e destruídos por potências estrangeiras. Pela sua maldade, os reis hebreus acabaram causando o mal que o povo temia. Em vez de serem a força da nação, tornaram-se a sua ruína.

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