domingo, 30 de março de 2008

PALAVRAS

Já há muito tempo, perturba-me um pensamento: Grande parte da imensa confusão das pessoas, em geral (e dos cristãos em particular) a respeito da doutrina cristã, advém da simples dificuldade de ler o texto bíblico. Nem falo aqui de dificuldades com a exegese ou com detalhes da lingüística, da história, da compreensão da cultura em que foi escrito cada livro bíblico. Nem mesmo falo da análise gramatical correta, mesmo do texto traduzido. A primeira dificuldade em que as pessoas tropeçam, muito mais simples do que tudo isso, é a compreensão do significado das palavras. Não se assuste o leitor, não vou falar de detalhes sutis no significado do texto hebraico ou grego. Estou falando de português mesmo.

A maioria das versões modernas em português são paráfrases altamente influenciadas pela interpretação dos tradutores (como toda paráfrase). Quem quiser alguma percepção das reais palavras dos autores lerá traduções mais antigas, ou suas atualizações. No caso das igrejas de tradição protestante, as atualizações da tradução Almeida tem sido as mais lidas e citadas, nas últimas décadas. É uma tradução muito antiga, e muitas palavras que foram escolhidas na época (e mantidas nas atualizações) tiveram seu significado alterado nos últimos séculos, causando uma certa confusão em pessoas que não tem o costume de ler textos mais antigos. Outras pessoas fazem confusão por conhecerem pouco do significado atual das palavras, aderindo ao mais popular. Outros tropeçam em conceitos da cultura atual, que os cegam para a intenção do texto, mesmo que explícita e, finalmente, há aqueles que ignoram as próprias definições dadas na Bíblia. Vou citar aqui alguns exemplos de confusões comuns dos leitores da Bíblia. O leitor pode procurar outros; é um exercício muito útil, que nos permite escapar de interpretações absurdas, mas comuns. Talvez eu torne ao tema, futuramente.

  1. O que é a “avareza”, tão condenada na Bíblia, que as cartas apostólicas consideram um tipo de idolatria? Se o leitor pensou no tio Patinhas, esqueça. Muitos espectadores, ao assistirem a peça “O avaro”, fazem essa associação e ficam sem entender nada. Avareza é mesquinhez, preocupação excessiva consigo mesmo, “olhar para o próprio umbigo”, como dizem atualmente. Seu oposto é a generosidade (o pensamento e a ação voltados para o gênero humano) uma característica que se desenvolve com o tempo. Deixar de ser bebê é perceber a existência do outro. A continuação desse desenvolvimento é ter interesse, empatia e finalmente paixão pelo outro. A culminação disso é amar o próximo como Cristo nos amou.

Talvez o leitor esteja perguntando: espera aí . . . quer dizer que o famoso mão de vaca não é um avarento? Até pode ser, mas não necessariamente. Pode ser apenas uma pessoa que tem o talento de fazer o seu dinheiro render. Mas e o sujeito mesquinho, que é doentiamente “mão de vaca”? Bom, o leitor já respondeu, é um doente. Seu grau de responsabilidade pelo seu comportamento é uma questão para se analisar caso a caso (e em parte, a nossa doença é nossa maldade), mas o que o diferencia do comum da humanidade é sua doença. E o sujeito perdulário, pode ser um avarento? É isso aí. E freqüentemente é.

  1. Inocência. Poucas palavras tem mudado tanto de significado. É aquele que não é culpado, mas a palavra tem sido usada no sentido de ignorante, aéreo, neófito, e até estúpido. Como se deu essa estranha associação de sentido? Pelo fato de que, muitas vezes, a defesa da inocência de uma pessoa ser feita pela alegação de desconhecimento (vide o caso do mensalão). Mas essa associação entre desconhecimento e inocência só pode ser feita de forma limitada. Há muito desconhecimento injustificável e a ignorância, passado um ceto limite, e culpável e até criminosa. Para um cristão, em particular, alegar desconhecimento pode ser admissão de culpa, visto que a Bíblia ensina a busca da sabedoria. Na Tanach, desconhecer a causa dos pobres é considerado uma impiedade e no NT está escrito “sede adultos no conhecimento e crianças na malícia”. Aqueles que chamamos de “inocentes', freqüentemente são o que a Bíblia chamaria de “tolos”. Ou pior ainda, hipócritas (eu tenho certeza de que o leitor conhece um caso assim, uma pessoa muito conhecida).

  2. Malícia. É maldade, não é esperteza. Quando um jogador de futebol prevê o lance seguinte com mais clareza que seus adversários, freqüentemente se diz que ele tem malícia, o nome de um vício. Mas na Bíblia a capacidade de agir com base em previsões bem fundamentadas é chamada de sabedoria, o nome de uma virtude. E a atitude de se prevenir contra uma possível adversidade é a “prudência”. Voltando ao exemplo do futebol: um jogador percebe com antecedência a situação e escapa de um “carrinho”. Segundo a Bíblia ele é sábio e prudente (pelo menos, quanto a esse assunto).

  3. Tolo. Segundo a Bíblia: “Diz o tolo em seu coração: não há Deus”. Tem um monte de gente bacana e “bem pensante” que entraria nessa categoria.

  4. Sábio. Segundo a Bíblia: “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria”. Tem um monte de gente bacana e “bem pensante” fora dessa categoria.

  5. Ungido. No tempo dos reis, três eram as funções cujos titulares eram ungidos: O rei, o profeta e o sacerdote. A unção não implicava em infalibilidade nem em autoridade absoluta. Significava o auxílio do Espírito do Eterno, para que a pessoa pudesse exercer bem sua função. A Aliança renovada em Cristo prevê a unção sobre todos os que crêem. No meio petencostal há quem queira que o pastor é “O Ungido do Senhor”, e portanto teria uma autoridade incontestável, mesmo quando está claramente errado. É interessante quem nem mesmo os católicos dizem isso sobre o papa, cuja suposta infalibilidade é sujeita a muitas limitações, mas há supostos herdeiros da Reforma querendo fazer dos seus “pastores”, “bispos” e “apóstolos”, novos “deuses”.

  6. Fé não é arriscar-se. É todo conhecimento obtido pela iluminação do espírito do homem, conforme define o apóstolo: “a certeza das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se vêem”. Mas parece um risco, uma decisão tomada contra as possibilidades, pois quem vê a ação daquele que tem fé, não percebendo os mesmos fatos espirituais, tem a nítida impressão de ver alguém apostando contra as probabilidades, embora agir com fé VERDADEIRA seja prova de sabedoria e prudência. Vejo como isto afeta nosso entendimento da Bíblia quando alguém pergunta: Fé é ter confiança nas obras de Deus ou em Seu caráter? Quem pergunta isto está buscando uma definição muito mais restrita do que aquela que a própria Bíblia dá.



Por enquanto é só.

2 comentários:

João Batista disse...

Não tenho palavras, mas notei um problema interessante em Gênesis. Quer dizer, num mesmo livro. Não há nem a desculpa da “inocência”. Estamos falando do que está lado a lado.

Trata-se da acusação de machismo Bíblico em Gênesis 3:16. De início, já seria suspeito um leitor sincero do AT esbarrar nisso como machismo, já que deveria ter lido logo anteriormente o Gênesis 2:24 da maravilhosa união. E claro, também logo de início, Gênesis 1:27-29. Adiante, em 20:6 e um pouco antes temos duas defesas por Deus da mulher contra a agressão masculina, e logo em seguida, em 21:9-13, Deus dá razão a Sara, à vontade da mulher. Finalmente, em 24:58 temos a liberdade da mulher, sua opinião tomada como consideração final.

Assim, o leitor de Gênesis não pode concluir machismo, é absolutamente impossível. Quem levantar a passagem mencionada (3:16) não leu Gênesis, apenas a passagem, certamente da boca ou pena de algum militante anticristão.

Aprendiz disse...

João

Os críticos da Bíblia sempre acharão chifre em cabeça de cavalo. O importante é que os cristãos conheçam bem a Bíblia, o que inclui conheçer seu contexto.