Tem sido comum, ao longo da história, que ao visitar uma pessoa doente, o cristão diga “peço a Deus que você se reestabeleça logo”, ou “que Deus lhe dê saúde”, seguido ou não de “se for da vontade de Deus”, ou algo semelhante. Não há registro de que algum dia tais expressões tenham sido objeto de censura ou mesmo discussão. Estranhamente, durante o último século, nos EUA, e agora também no Brasil, em certos grupos evangélicos, falar assim seria considerado um pecado, ou pelo menos um sinal de falta de entendimento teológico. Mais ainda, os que colocam as coisas dessa forma dizem serem herdeiros da verdadeira tradição da Igreja, do que ela sempre creu! É uma estranha forma atual de cessacionismo, que é uma doutrina que defende que os dons espirituais cessaram no fim da época dos apóstolos. Tal doutrina surgiu alguns séculos depois de Cristo. Muito mais recentemente surgiu o conceito de que seria impossível qualquer evento milagroso após a época dos apóstolos, o que podemos chamar de cessacionismo absoluto.
AQUELES QUE REESCREVEM A HISTÓRIA
Creio na doutrina da continuação dos dons do Espírito do Eterno. Um dos motivos pelos quais eu creio nisso é a ausência de qualquer resquício de alguma doutrina cessacionista nos primeiros séculos. Quando não encontramos referência a alguma doutrina ou prática entre os primeiros cristãos, devemos por as mãos na cabeça e pensar cincoenta vezes se essa doutrina não é falsa. Os apóstolos diziam ter ensinado tudo quanto é necessário aos seus discípulos e estes teriam de ter demonstrado de alguma maneira cada doutrina importante, através de seus escritos e de suas obras registradas na história. Cada doutrina ou prática que não tem atestação primitiva deve ser provada, escrituristicamente, de forma muito mais forte, pois já nasce com uma evidência pesada contra si. Considero impossível que qualquer doutrina essencial seja definida apenas séculos depois de Cristo. No máximo, e mesmo assim com grande ônus inicial para os seus defensores, poderá ser uma definição mais precisa do que já fora dito antes. Mas geralmente ocorre que, quanto mais recente é o surgimento histórico de uma doutrina, menos forte a sua prova escriturística.
O cessacionismo foi proposto pela primeira vez por Agostinho, que nunca citou nenhum autor anterior como defensor dessa doutrina, pelo contrário, atribuiu sua construção a si mesmo. Pior ainda, no fim de sua vida renegou-a, pois era baseada firmemente em sua própria experiência, na “prova” negativa de não ver os dons do Espírito atuando em seu tempo. Aquilo em que se crê pela experiência, mesmo que receba depois uma capa de justificação teórica, pela experiência cai. Assim foi com o cessacionismo de Agostinho, que ao ver uma cura milagrosa, jogou-o fora, junto com a justificação teológica que havia construído. Tal é a fraqueza dos argumentos de Agostinho, segundo sua própria avaliação.
Vendo o desenvolvimento histórico da cristandade, numa perspectiva que seria impossível a Agostinho, sua hipótese parece-nos ociosa. Ele buscava uma explicação para a ausência de dons, e construiu-a com a doutrina do cessacionismo. Mas para nós há uma explicação muito mais simples, a extinção do Dom do Eterno pelo desvio da Igreja. Os grandes pecados da Igreja nos séculos posteriores são claramente resultantes de erros que já começavam a se agigantar no tempo de Agostinho. Além disso, como citaremos mais tarde, há uma variação da freqüência dos milagres ao longo do tempo.
Mesmo aceita como explicação genérica para a pouca ocorrência do milagroso, em relação aos tempos apostólicos, o cessacionismo não era de forma nenhuma absoluto. Não ocorria a ninguém a idéia de um Deus proibido de agir sobrenaturalmente no mundo físico. Não é que tal idéia não tenha sido aceita, é que nem sequer foi proposta, em instante algum, seja durante os primeiros séculos, seja durante o desenvolvimento das Igrejas católicas ocidental e oriental, ou pelos pré-reformadores, pelos reformadores, ou durante a formação das igrejas nacional, e a formação das denominações não estatais históricas. Tudo que se afirmou é que alguns dons cessaram, e os milagres, se ocorressem, não ocorriam através deles. Em toda a história da Igreja, até a idade moderna, não há testemunho de igreja que duvidasse que Deus age milagrosamente em qualquer momento que ele queira, atendendo às orações ou não. As doutrinas, os ritos, os escritos dos formadores da doutrina, tudo testemunha sobre a crença no poder sobrenatural do Eterno invadindo a história, sem pedir licença nem esperar o momento que os homens julguem “adequado”. Nada testemunha de uma suposta impossibilidade do milagre. Quem nega isso, não leu os cristãos antigos ou medievais, orientais ou ocidentais, os reformadores e os católicos.
Se o cessacionismo absoluto é doutrina nova, quando ela surgiu? Sabemos que existe hoje, mas desde quando? Espantosamente, parece que surgiu por influência do deísmo inglês, levado para as Américas. No início do século XX, quando começou a querela nos EUA contra os petencostais, alguns evangélicos usaram o argumento do cessacionismo de maneira exagerada, imitando, de forma aparentemente inconsciente, o deísmo de dois séculos antes. Assim, para ter armas mais fortes para um embate, tornaram parte dos evangélicos americanos, de forma inédita, deístas práticos, fazendo o que dois séculos de assédio não tinham conseguido fazer. Criaram, dentro do coração de muitos evangélicos, o deus ausente dos deístas, que não atende às orações. E, espantoso, forjaram uma falsa história para se justificarem. Aparentemente, depois que os marxistas inauguraram esse caminho da história mutante, abriu-se uma caixa de Pandora. Suponho que o próprio Diabo tenha se assustado, quando descobriu que pode-se mentir impunemente sobre fatos bem conhecidos e bem documentados da história. Mas isso é assunto para um outro artigo.
ARGUMENTANDO DENTRO DA PRIMEIRA CARTA AOS CORÍNTIOS
A seção anterior basta para desmascarar o cessacionismo absoluto. Mas pretendo mais do que isso, mostrar a falta de base do cessacionismo em si. Neste pequeno artigo, farei uma curta análise da questão na “Primeira carta do apóstolo Paulo aos coríntios”.
Até o capítulo 11, o apóstolo trata de diversos assuntos referentes a questões práticas, dificuldades que estavam ocorrendo naquela igreja. Do capítulo doze ao quatorze, é também uma resposta a uma questão prática, sobre o uso dos dons do Espírito, apenas um pouco mais comprida, pois seria necessária alguma explicação inicial sobre o assunto, na maior parte desse trecho, antes de chegar às recomendações práticas, a partir do verso 26 do capítulo 14. No capítulo 15 ele responde a uma questão sobre a ressurreição, e no 16 ele dá instruções sobre coleta para os irmãos da Judéia e faz as exortações e saudações finais. Exposto assim esse “índice” do livro, claro está que a última parte do capítulo 14 é conseqüência do que foi dito nos capítulos 12, 13 e início do 14, e não pode ser contraditório com o que está ali. Estranhamente, muitos deduzem da parte inicial do trecho uma doutrina que contradiz frontalmente a conclusão prática no final do capítulo 14, julgando que o apóstolo ensina contra a existência, já naqueles dias, dos dons espirituais, ou pelo de parte deles. Os que argumentam assim, parecem cegos ao fato de que no final do capítulo 14 ele regula o exercício desses dons “desaparecidos”. Tal argumentação é tão sem sentido que não perderei meu tempo com ela.
Uma segunda linha de raciocínio cessacionista é a que defende que o “falar em línguas”, citado no texto, seria simplesmente a fala de algum estrangeiro que estivesse visitando a igreja. É um argumento estranhíssimo, visto que no trecho todo, o “falar em línguas” é atribuído à ação do Espirito do Eterno, comparado a profetizar. Quem argumenta assim teria de fazer uma colcha de retalhos, pegando a mesma expressão nas suas diversas ocorrências dentro do trecho e dando-lhe significados diferentes, conforme o seu interesse em provar seu ponto. Além de ser uma forma absurda de ler um texto, supõe que o apóstolo fosse um escritor maluco.
Uma terceira argumentação, mais séria que as duas anteriores, é a de que o apóstolo prevê a cessação dos dons espirituais, com o término da era apostólica. Esta é a argumentação mais antiga, de Agostinho (mesmo assim, séculos após Cristo).
Freqüentemente os que defendem essa tese pretendem ver no texto uma ”oposição” entre o amor e o exercício dos dons. Estranha essa visão, que considera que algum dom (presente) dado pelo Eterno as sua Igreja pode opor-se ao amor. Penso o contrário, que se algum presente foi dado pelo Eterno à sua Igreja, terá de ser algo que trabalhe na mesma direção que o amor. Se, por absurdo, houvesse tal oposição, Paulo teria proibido e não regulado os dons. Mais tais pessoas consideram que o apóstolo está desestimulando os dons. Estranho, considerando que ele exalta a sua variedade, chama o falar em línguas de falar mistérios em espírito, ordena o seu uso como coisa útil e boa à Igreja. Há textos na Bíblia que parecem opor a sabedoria ao amor, mais ninguém os interpreta assim. Mas qual o significado da aparente oposição entre dons e amor? Paulo opõe o amor à vaidade e ao orgulho, que alguns por infantilidade exibiam, por causa de seus dons e isso faz muito mais sentido, pois amor não se opõe aos dons de Deus, mas se opõe ao egoísmo, o qual resulta em orgulho.
Geralmente, a parte principal da argumentação cessacionista consiste em interpretar “o que é perfeito” (verso 10 do capítulo 13) como o fechamento do cânon. Os versos 11 e 12 continuam o mesmo argumento, falam da mesma coisa. Mas não parece viável aplicar o verso 12 à época presente. Certamente nossa visão ainda é obscura, certamente nós não vemos o Eterno face a face, certamente não o conhecemos como somos conhecidos. Mas haverá quem queira que o verso 12 nada tem com o 10 (ao mesmo tempo que ligam o 10 com o 13). O ônus que se paga para crer nisso é que o texto vira um samba do crioulo doido. Sem problemas, há quem não se importe com isso, desde que faça valer a tese que lhe agrada. Mas alguém dirá: “se não é o cânon, logo o que é?”. Não tenho de ter uma resposta para isto, há muitos coisas difíceis na Bíblia, particularmente em relação aos últimos tempos. Geralmente a prova negativa é mais fácil que a positiva, e o meu argumento prova conclusivamente o que não é. Desde tempos imemoriais, sempre houve (e continuará havendo) quem se aproveite da obscuridade de algum assunto para tentar convencer de algo absurdo. E muitas vezes usando o mesmo argumento: “eu tenho uma resposta, meus adversários não tem nenhuma”. Nós não temos muitas respostas, e é melhor não te-las do que ter as erradas.
Resta finalmente o verso 13, cuja interpretação mais óbvia quereria dizer que os dons já haviam cessado na época em que a carta foi escrita. Mas já provamos que isto é absurdo, em face do teor todo do trecho, que só tem sentido se os dons fossem atuantes, e em particular do fim do capítulo 14, que regula o uso dos dons. Ninguém de bom senso aceitaria uma interpretação absurda dentro da própria argumentação do texto, apenas por ser a interpretação mais literal. Alguém argumentará que não haverá nenhum outro tempo, fora o período entre o fim da era apostólica e a segunda vinda do Cristo, em que fé, esperança e amor possam ser os únicos dons. Primeiramente, talvez a palavra traduzida como “agora” possa ter um significado que não indique tempo, mas ênfase, por exemplo. É um bom debate para os que sabem bem o grego dessa época. Por outro lado, no milênio haverá sim lugar para a fé e a esperança, juntamente com o amor. Tanto assim que haverá aqueles que, no fim do milênio, se revoltarão contra o Ungido. Certamente tais pessoas não terão confiança em suas promessas dos novos céus e nova terra, nem terão esperança nessa realidade superior.
RESPONDENDO A VÁRIOS ARGUMENTOS CESSACIONISTAS
Supõem, muitos cessacionistas, que o único motivo da ação sobrenatural é servir de sinal para um público. Mas muitos dos milagres feitos por Jesus e pelos servos do Eterno não tiveram como único objetivo servir de sinal. Na verdade, muitos não foram citados na Bíblia, e muitos foram feitos em particular. Freqüentemente Yeshua pedia segredo aos beneficiados. E outros motivos são citados para o milagre, em muitos casos.
O cessacionismo geralmente supõe que a profecia (ou seus equivalentes), resulta necessariamente em Escritura. Esse é o argumento usado para negar a existência de profecias após o tempo dos apóstolos. Pois bem, a maioria das profecias jamais produziu Escrituras. No NT, haviam profecias (ou dons equivalentes) com objetivos bastantes limitados, como orientar a obra de evangelização, avisar sobre dificuldades futuras, enfim, aplicações que seriam válidas hoje ou em qualquer tempo.
Respondendo ainda ao argumento anterior, se toda comunicação do Espirito com uma pessoa particular gerasse Escritura, o Espírito não poderia nem mesmo chamar os pastores.
É suposição comum entre os cessacionistas que milagres só ocorrem para autenticar profetas ou a formação das Escrituras. Mas isso não é verdade, não está escrito em lugar nenhum da Bíblia que seja assim, isso não pode ser deduzido inevitavelmente e, na verdade, é fácil encontrar contra-exemplos. Houveram muitos sinais na época dos Juízes que seriam totalmente desnecessários por tais critérios. Quanto à confirmação da autoridade dos Juizes, poderia ser firmada por qualquer vitória militar, mesmo que não houvessem milagres visíveis.
É suposição comum entre os cessacionistas que os milagres ocorridos estão citados na Bíblia, pelo menos aqueles anteriores a Cristo. Mas isso é falso. Certamente a maioria dos profetas não teve suas palavras registradas, e qualquer profecia verdadeira é um milagre. Todo tipo de milagre pode ter ocorrido sem ter sido registrado, a Bíblia nunca afirmou ser uma narrativa exaustiva, e muitos milagres podem ter ocorrido mesmo em outros lugares, longe de Israel.
Supõem muitos cessacionistas que o único objetivo da expulsão de demônios é servir de sinal. Mas várias pessoas que vieram a ser crentes em Yeshua foram anteriormente endemoninhadas, e não poderiam crer sem serem primeiro libertas. Assim os cessacionistas absolutos promovem o descumprimento da Escritura Sagrada que diz “ide por todo mundo e pregai o evangelho a TODA criatura”, pois querem proibir que se expulsem demônios o que equivale a proibir que se pregue aos endemoninhados. Não só negam assim o testemunho de todo ex-endemoninhado que já se tornou crente, mas ocultam o poder de Deus, se é que crêem nele.
Como já argumentei no primeiro capítulo, negam os cessacionistas a história unânime das igrejas cristãs, pois desde o início houve exorcismo e ritos de cura, sendo a própria extrema-unção (como vários ritos nas igrejas reformadas ) um rito de cura que mudou de significado com o tempo, baseado que foi inicialmente no ensino de Tiago sobre a unção dos doentes.
Dizem eles, seria desnecessária a prova do poder divino por meios de sinais, posteriormente à época dos apóstolos, visto que o ser humano de tempos posteriores, sendo superior intelectualmente, não precisa de sinais. Espantosamente, dizem isso assim, de cara lavada, aplicando tal argumento a uma infinidade de situações de evangelização, em épocas, culturas e subculturas diferentes. Quão sábio deve supor-se alguém para usar tal argumento, e quão ignorante precisa ser da história dos povos. Ou pior, quão embotado está seu senso, pela necessidade de justificar sua própria visão de mundo.
Por último, há um único argumento do cessacionista que é sério e bem firmado na Bíblia. Mas tem o defeito, para os cessacionistas, de não conduzir necessariamente à sua doutrina. É fato bem estabelecido que a ação visivelmente sobrenatural do Eterno, ao longo do tempo, variou bastante. Mas isso não prova a validade do cessacionismo, nem mesmo na sua forma relativa (a única que tem presença na história da Igreja, ao contrário dessa fraude moderna que é o cessacionismo absoluto). Pelo contrário, se a intensidade dessa ação arrefeceu várias vezes, e aumentou posteriormente, isso parece indicar que sua variação é imprevisível para a mente humana, e nada garante que não poderá aumentar em qualquer tempo. Além disso, mesmo em épocas de menor ocorrência, há relatos de tal ação.
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