domingo, 21 de setembro de 2008

DORMINDO COM O INIMIGO I

Uma das boas almas que aprecio, no campo esquerdista, é a deputada espanhola Pilar Rahola. Considero impressionante seu trabalho de conscientização, buscando influenciar outros esquerdistas no sentido de agirem com alguma racionalidade e justiça. Freqüentemente escreve artigos e mais artigos mostrando a injustiça e irracionalidade de atiçarem ao máximo a fúria dos palestinos e justificarem todos os mais terríveis crimes dos mais diversos grupos terroristas, o absurdo do anti-americanismo doentio e a loucura de abortar bebes de 8 meses. Boas intenções, mas tempo perdido, o esquerdismo não pode ser essencialmente melhorado, ou deixará de ser aquilo para que foi criado.

A idéia de ter poder sobre “as massas”, de transformar o povo num monstro, sobre o qual uma pequena elite tenha poder, usando os instrumentos da vitimização do grupos escolhidos como “excluídos”, os instrumento da auto-justificação e auto-glorificação (até aos céus) da classe revolucionária, a obtenção da exclusividade da virtude e da justiça (justamente pelos mais caras-de-pau), a infantilização da sociedade, tal idéia é tão poderosa, tão perfeita para seus objetivos, que uma vez que foram desenvolvidas as suas técnicas, jamais deixarão de ser usadas, a não ser que o povo venha a estar tão consciente delas, que deixem de ser efetivas. Mas tal idéia, desde o início, é a alma do esquerdismo. Sob muitos aspectos é semelhante à opressão que sempre se praticou, à escravização do povo por uma pequena elite, opressão embrulhada muitas vezes numa teia de mentiras a respeito da ascendência divina do governante, ou alguma coisa assim. A grande novidade é a transformação da elite dominante em “povo no poder”. Quanto poder teriam César, Alexandre, ou o faraó, se conseguissem ser apresentados como membros do povo que tomaram o poder dos poderosos? Se, ao mesmo tempo que todos pintassem rei como ser sobre-humano, divino, dissessem dele que é simples homem da classe trabalhadora no poder, a qual, por meio dele, atinge todos os seus objetivos, e já não tem opressor? Se dissessem que, por meio dele, se faz a justiça completa, no momento exato em que seus oficiais estivessem subjugando, prendendo, torturando e escravizando o povo, e assassinando milhões dentre eles. Se uma mentira tão incoerente pudesse prosperar na antiguidade, o rei-sol, o rei-divino, sofreria um tremendo up-grade e se tornaria um dirigente comunista. Há maior poder e opressão do homem sobre o homem do que isto? Que psicopata, que ególatra, que paranóico não sonharia com um poder desses? Os instrumentos para realização desse sonho delirante teriam sido criados pouco antes da revolução francesa, aplicados nela, e melhorados desde então.


Virtualmente toda classe revolucionária veio das classes médias, do refugo da casta administrativa, e lutam sempre para se tornar a nova elite, galgar os postos mais altos, inclusive através da luta mortal entre “companheiros”. Mas todos tentam parecer, e até chegam a crer-se, representantes das “classes oprimidas”. Praticamente não há representantes reais dos trabalhadores braçais, e onde se encontra algum, só chega a ser considerado um “legitimo representante” das “classes oprimidas” quando já deixou de ser a tempos um trabalhador braçal e já se tornou um membro efetivo das classes médias revolucionárias, tendo absorvido seus vícios e cacoetes. Não é por acaso, que todos os chamados “líderes do povo” pelos socialistas eram originários das classes médias, e sempre gente de personalidade ególatra e em busca frenética de glorificação. Não é desvio ou distorção do que se intentava, nem seria invisível para quem olhasse o que realmente estava acontecendo na revolução francesa, na revolução russa, na chinesa, na cubana, cambojana, vietnamita, etc... Mas nada disso está nos livros de “história” que são adotados por nossas escolas.


Há uma tese defendida por alguns autores, segundo a qual esse refugo das classes médias não é a origem, é instrumento da revolução. Sua origem seria o sonho de um poder mundial, acalentado por grupos internamente coesos e organizados, momentaneamente unidos por um objetivo estratégico comum (mas já planejando como trair um ao outro). A idéia central é recriar o mito do “rei-divino” da antiguidade, projeto que sempre funcionava por algum tempo, mas eventualmente falhava, pois em todos os impérios da antiguidade o oprimido tinha consciência de ser oprimido. Na pior das hipóteses, consideraria sua própria fraqueza como justificativa aceitável para sua condição, mas jamais diria daquele que o prendesse “é meu libertador”, ou daquele que o roubasse “é este quem devolve o que me foi tirado”, ou daquele que assassinasse seu familiar “é meu protetor”.


Seria possível obter tal submissão e distorção da percepção de grande parte da população? Criar uma situação tal que mesmo a revolta íntima contra o mal fosse impensável? Fazer com que todos tivessem medo de admitir que o claro é claro e o escuro é escuro? Chamar a verdade de mentira e a mentira de verdade, na frente daqueles que poderiam enxergar a fraude, e ser crido por eles? Sabia-se há muito tempo que pode-se levar algumas pessoas a tal confusão, com um esforço concentrado, mas seria aplicável a uma sociedade inteira? O poder do blefe está na ousadia e o poder da mentira pode ser sua profusão. Era um conceito ousado, mas quem quer que sonhasse com um “estado-deus” e um “rei-divino” (houve mentira mais amplamente aplicada, mito mais buscado, na história da humanidade?) sabia que essa seria sua última chance. Os mitos antigos que sustentavam os reis-divinos já estavam caindo, só algo muito mais amplo salvaria esse conceito, a cartada final. A situação mais perfeita para realização desse conceito, seria em oposição a um rei absolutista, o que tornaria verdadeiras parte das justificativas.


Se foi de caso pensado, foi um sucesso estrondoso. Fazer uma revolução, tirar as terras de uso livre dos camponeses pobres, e vende-las para particulares, isso seria fácil. Mas fazer isso e ver tal revolução celebrada como a libertação dos camponeses? Levar os revolucionários a massacrarem, em exíguo tempo, um décimo da população do país, isso é comum. Mas transformar tal revolução em celebração da vida, uma “luz” em relação à situação anterior de trevas (que matou muito menos, seja em números absolutos, seja em relativos)? Impor um novo culto, com novos deuses, a um país inteiro, quantas vezes já se fez isso na história? Mas quem conseguiria que isso fosse chamado de “estado laico”? A revolução francesa teria sido o primeiro grande teste de um conceito, e foi, talvez, mais exitoso que a mais favorável previsão de quem quer que tenham sido seus idealizadores, cujos nomes a história não registrou. Nos séculos seguintes, muitos outros teriam aprofundado a aplicação do mesmo conceito.


Talvez seja uma teoria exagerada, não sabemos. Mas é bastante instigante.

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