domingo, 20 de janeiro de 2008

A MENTE DO LEITOR DA BÍBLIA

Romancistas e roteiristas que escrevem com base em histórias bíblicas, freqüentemente são obrigados a acrescentar muita ficção às suas obras. O estilo da maioria dos escritos antigos, incluindo os livros que compõem a Bíblia, é bastante conciso, quase taquigráfico, deixando a curiosidade dos leitores insatisfeita. Na Bíblia, que é a literatura antiga mais conhecida, vemos evangelistas narrando discursos ou debates que devem ter durado horas, mas cujo resumo, escrito por eles, pode ser lido em minutos, ou em segundos. Muito da vida de Paulo, o emissário, que compõem grande parte do livro dos Atos dos Emissários (apóstolos), é narrada em relativamente poucas páginas, deixando muita informação por dizer (embora algo se possa deduzir pelo confronto entre os livros da Bíblia, completando informações, e corrigindo falsas impressões causadas pela leitura de um único texto). Na Torah, a concisão chega a tal ponto, que as gerações de israelitas que viveram no Egito, por mais de quatrocentos anos, são reduzidas a menos de meia dúzia de gerações, levando-nos a supor que, ou eram extremamente longevos, ou o narrador simplesmente cortou das genealogias grande parte das pessoas, por critérios que ele simplesmente não diz.

Por outro lado, há uma abundância de informações detalhadas, muitas vezes repetitivas, levando o leitor ocidental a se perguntar, para que serve saber quanto media ou pesava cada presente de cada um dos príncipes de Israel para o tabernáculo, em certa ocasião, sendo os presentes de todos os príncipes exatamente iguais (devem ter combinado, para não haver uma inapropriada competição). Por que tantas genealogias, com nomes de pessoas que, geralmente, não são citadas na narrativa principal? Por que a extrema concisão da narrativa de Atos é substituída de repente por detalhes minuciosos de um naufrágio, com descrições precisas de ventos, técnicas de navegação e controle do navio? Outros naufrágios de Paulo nem são citados no livro.

Creio que O Eterno fez com que a Bíblia fosse escrita exatamente do jeito que Ele queria, embora seus motivos sejam ocultos para nós.

Mas, voltando aos romancistas e roteiristas, estes trabalham com uma linguagem que exige mais detalhes, os quais são inventados tentando não contrariar os dados reais da história bíblica, da história israelita e da de outros povos. Os inúmeros erros nessas tentativas mostram o quanto nossos escritores são ignorantes a respeito. Às vezes, o motivo da falha em adequar o texto fictício às informações bíblicas não vem apenas da ignorância do escritor atual. Há algo interno à própria mente do romancista.

A nossa mente funciona de forma estranha, não trabalhando apenas com dados reais, mas substituindo-os, no passar do tempo, por esquemas que de certa forma os resumem os dados percebidos pelos sentidos, e anexam-nos a outros esquemas mais gerais. Esta forma de funcionar permite à mente humana uma capacidade de entendimento e previsão muito maior do que seria possível de outra forma. Não fosse ela assim, provavelmente não teríamos hoje uma mínima fração da ciência, técnica, história e cultura, que temos. Talvez nem fôssemos viáveis, sem entender o mundo, sem aprender a generalizar idéias, destruídos pelos elementos da natureza.

Por outro lado, esta forma de funcionamento da nossa mente tem efeitos colaterais que podem ser prejudiciais se não estivermos atentos a eles. A busca pela generalização, tão útil, pode levar nossa mente a “inventar” informações, cortar da memória dados essenciais, distorcer o mundo. Muitos sabem a respeito de bêbados e drogados, que, esquecendo as informações verdadeiras, inventam estórias falsas, nas quais eles próprios acreditam. Mas isto acontece também com gente sóbria. Fatos de nossa história pessoal são alterados, principalmente de nossa primeira infância. Ao vermos posteriormente o ambiente em que fomos criados, ou ouvirmos de pessoas mais velhas a narrativa de algum fato que presenciamos quando pequenos, percebemos que algo foi mudado em nossa lembrança.

Psicólogos que estudam o comportamento de testemunhas em inquéritos policiais, conhecem casos de pessoas que, sofrendo ou testemunhando um ato de agressão, sob condições de luz ruim, ou de forma muito rápida, examinam na delegacia um livro com fotos de criminosos. Às vezes, pelas características do crime, o policial supõe saber qual criminoso o executou, insistindo com a testemunha a respeito da foto daquele criminoso. Neste caso, às vezes acontece da testemunha inserir a imagem daquele criminoso em sua memória, e passar a “lembrar” daquela pessoa que, como se descobre depois, não poderia ter estado lá. A busca de coerência para as informações, pode nos levar a crer em mentiras. Se levarmos em conta também o efeito de nossos traumas e loucuras, o efeito sobre nossa percepção geral pode ser devastador.

Isto acontece também com nossa percepção da Bíblia. Temos idéias prontas a respeito de teologia, comportamento humano, sociologia. Buscamos coerência em nosso conhecimento bíblico, e dele em relação aos nossos outros “conhecimentos” (muito deles carregados de erros e preconceitos) e muitas informações do texto parecem simplesmente não encaixar-se. Uma pesquisa nas línguas originais, com ajuda de algum especialista, ou a leitura de análises histórico-gramaticais pode ajudar. Penso que todos aqueles que trabalham com o texto bíblico, sejam pastores, teólogos, especialistas, ajudariam muito mais a nós, leigos, se procurassem imergir na cultura da época, ler em abundância textos outros da mesma época e local, ou pelo menos tão próximos quanto possível, se estiverem disponíveis. Dizia C. S. Lewis que, se alguém só se dedica ao texto bíblico, sua análise dele não será tão boa. Sobre isto, talvez uma ótima recomendação seja a leitura cuidadosa de textos judaicos contemporâneos, e artigos sobre eles.

Pretendo escrever uma série de textos, comparando o que muitas pessoas geralmente entendem do texto bíblico, com as próprias informações bíblicas. Sou um leigo. Não espero que alguém forme opinião pela leitura de algum dos meus textos. Mas aqueles que acharem que há algo de relevante em algo que escrevo, farão sua análise mais profunda, comparando com outras fontes, de forma a, talvez, melhorar sua própria compreensão do texto bíblico.



PS: Por acaso, Olavo de Carvalho escreveu, recentemente, um excelente texto sobre a leitura da Bíblia:

http://www.olavodecarvalho.org/semana/080117jb.html

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