Blog "Bolkonsky espera"
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Este blog busca contribuir com a popularização de temas diversos.
Romancistas e roteiristas que escrevem com base em histórias bíblicas, freqüentemente são obrigados a acrescentar muita ficção às suas obras. O estilo da maioria dos escritos antigos, incluindo os livros que compõem a Bíblia, é bastante conciso, quase taquigráfico, deixando a curiosidade dos leitores insatisfeita. Na Bíblia, que é a literatura antiga mais conhecida, vemos evangelistas narrando discursos ou debates que devem ter durado horas, mas cujo resumo, escrito por eles, pode ser lido em minutos, ou em segundos. Muito da vida de Paulo, o emissário, que compõem grande parte do livro dos Atos dos Emissários (apóstolos), é narrada em relativamente poucas páginas, deixando muita informação por dizer (embora algo se possa deduzir pelo confronto entre os livros da Bíblia, completando informações, e corrigindo falsas impressões causadas pela leitura de um único texto). Na Torah, a concisão chega a tal ponto, que as gerações de israelitas que viveram no Egito, por mais de quatrocentos anos, são reduzidas a menos de meia dúzia de gerações, levando-nos a supor que, ou eram extremamente longevos, ou o narrador simplesmente cortou das genealogias grande parte das pessoas, por critérios que ele simplesmente não diz.
Por outro lado, há uma abundância de informações detalhadas, muitas vezes repetitivas, levando o leitor ocidental a se perguntar, para que serve saber quanto media ou pesava cada presente de cada um dos príncipes de Israel para o tabernáculo, em certa ocasião, sendo os presentes de todos os príncipes exatamente iguais (devem ter combinado, para não haver uma inapropriada competição). Por que tantas genealogias, com nomes de pessoas que, geralmente, não são citadas na narrativa principal? Por que a extrema concisão da narrativa de Atos é substituída de repente por detalhes minuciosos de um naufrágio, com descrições precisas de ventos, técnicas de navegação e controle do navio? Outros naufrágios de Paulo nem são citados no livro.
Creio que O Eterno fez com que a Bíblia fosse escrita exatamente do jeito que Ele queria, embora seus motivos sejam ocultos para nós.
Mas, voltando aos romancistas e roteiristas, estes trabalham com uma linguagem que exige mais detalhes, os quais são inventados tentando não contrariar os dados reais da história bíblica, da história israelita e da de outros povos. Os inúmeros erros nessas tentativas mostram o quanto nossos escritores são ignorantes a respeito. Às vezes, o motivo da falha em adequar o texto fictício às informações bíblicas não vem apenas da ignorância do escritor atual. Há algo interno à própria mente do romancista.
A nossa mente funciona de forma estranha, não trabalhando apenas com dados reais, mas substituindo-os, no passar do tempo, por esquemas que de certa forma os resumem os dados percebidos pelos sentidos, e anexam-nos a outros esquemas mais gerais. Esta forma de funcionar permite à mente humana uma capacidade de entendimento e previsão muito maior do que seria possível de outra forma. Não fosse ela assim, provavelmente não teríamos hoje uma mínima fração da ciência, técnica, história e cultura, que temos. Talvez nem fôssemos viáveis, sem entender o mundo, sem aprender a generalizar idéias, destruídos pelos elementos da natureza.
Por outro lado, esta forma de funcionamento da nossa mente tem efeitos colaterais que podem ser prejudiciais se não estivermos atentos a eles. A busca pela generalização, tão útil, pode levar nossa mente a “inventar” informações, cortar da memória dados essenciais, distorcer o mundo. Muitos sabem a respeito de bêbados e drogados, que, esquecendo as informações verdadeiras, inventam estórias falsas, nas quais eles próprios acreditam. Mas isto acontece também com gente sóbria. Fatos de nossa história pessoal são alterados, principalmente de nossa primeira infância. Ao vermos posteriormente o ambiente em que fomos criados, ou ouvirmos de pessoas mais velhas a narrativa de algum fato que presenciamos quando pequenos, percebemos que algo foi mudado em nossa lembrança.
Psicólogos que estudam o comportamento de testemunhas em inquéritos policiais, conhecem casos de pessoas que, sofrendo ou testemunhando um ato de agressão, sob condições de luz ruim, ou de forma muito rápida, examinam na delegacia um livro com fotos de criminosos. Às vezes, pelas características do crime, o policial supõe saber qual criminoso o executou, insistindo com a testemunha a respeito da foto daquele criminoso. Neste caso, às vezes acontece da testemunha inserir a imagem daquele criminoso em sua memória, e passar a “lembrar” daquela pessoa que, como se descobre depois, não poderia ter estado lá. A busca de coerência para as informações, pode nos levar a crer em mentiras. Se levarmos em conta também o efeito de nossos traumas e loucuras, o efeito sobre nossa percepção geral pode ser devastador.
Isto acontece também com nossa percepção da Bíblia. Temos idéias prontas a respeito de teologia, comportamento humano, sociologia. Buscamos coerência em nosso conhecimento bíblico, e dele em relação aos nossos outros “conhecimentos” (muito deles carregados de erros e preconceitos) e muitas informações do texto parecem simplesmente não encaixar-se. Uma pesquisa nas línguas originais, com ajuda de algum especialista, ou a leitura de análises histórico-gramaticais pode ajudar. Penso que todos aqueles que trabalham com o texto bíblico, sejam pastores, teólogos, especialistas, ajudariam muito mais a nós, leigos, se procurassem imergir na cultura da época, ler em abundância textos outros da mesma época e local, ou pelo menos tão próximos quanto possível, se estiverem disponíveis. Dizia C. S. Lewis que, se alguém só se dedica ao texto bíblico, sua análise dele não será tão boa. Sobre isto, talvez uma ótima recomendação seja a leitura cuidadosa de textos judaicos contemporâneos, e artigos sobre eles.
Pretendo escrever uma série de textos, comparando o que muitas pessoas geralmente entendem do texto bíblico, com as próprias informações bíblicas. Sou um leigo. Não espero que alguém forme opinião pela leitura de algum dos meus textos. Mas aqueles que acharem que há algo de relevante em algo que escrevo, farão sua análise mais profunda, comparando com outras fontes, de forma a, talvez, melhorar sua própria compreensão do texto bíblico.
Um amigo perguntou a minha opinião sobre uns filmes a respeito de Apocalípse, acho que baseados em livros de Tim LaHaye. São uma série de filmes, que estão nas locadoras, dos quais eu assisti um. Não gostei muito, mas não é essa a questão que quero discutir. Meu amigo expressou a seguinte opinião: A literatura judaica anterior ao apocalipse continha vários outros livros semelhantes. Era um gênero literário. A conclusão a que ele chegou (com a qual concorda muita gente), é que o livro de Apocalipse não tem a intenção de conter uma profecia sobre a ordem cronologica de acontecimentos futuros, mas é apenas um texto escrito com a intenção de incentivar e consolar cristãos que viviam uma situação de perigo e angustia. Não respondi nada, na hora. Mas pensei sobre o assunto depois, embora não conversado com ele sobre esse assunto novamente, pois esse não é um assunto pra se falar em uma conversa ligeira. Não concordo com a conclusão, por dois motivos:
Quem imitou quem?
Apocalipse parece-se muito com certos trechos dos profetas, principalmente Daniel. Da mesma forma, a literatura “apocalíptica” anterior. A explicação para existir tal literatura não é difícil. Sempre existiram profetas em Israel, em número muito maior do que aqueles que integram nosso Canon. Aqueles cujas profecias não foram preservadas no Canon podem ter tido parte de suas palavras proféticas reais preservadas em livros diversos (como o livro de Enoque), que embora não fossem inspirados, poderiam conter trechos reais de profecias. Ao lado disso, sempre houve uma tradição de falsos profetas em Israel, gente que gostaria de ter o seu nome prestigiado com o “título” de profeta. De qualquer forma, depois disso houve uma ampla tradição de livros cujos autores os atribuiam a patriarcas e profetas, para emprestar maior “autoridade” ao seu conteúdo. A falsa atribuição de autoria foi amplamente usada por seitas marginais, primeiro entre judeus, e depois entre cristãos, para obter aprovação para peculiaridades proféticas e exegéticas, que de outra maneira não obteriam atenção nenhuma do público alvo. Dentro desse ambiente, é muito natural que houvessem livros que procurassem imitar profetas tão sábios e respeitados como Daniel e Ezequiel, com suas imagens proféticas tão vívidas e chamativas.
Mas para quem crê que João teve sobre si o mesmo Espírito de profecia que Daniel, e que teve a mesma missão de prever os tempos numa cronologia ampla, não é estranho que seus escritos parecessem com os trechos proféticos de Daniel.
Não parece uma boa maneira de confortar as pessoas
Comprido, hermético e violento demais. Assim parece Apocalipse. Não é o tipo de literatura que a maioria das pessoas leria com o objetivo de se sentirem confortadas. Para dizer que o Bem vencerá no final, João poderia ter escrito algo mais simples e breve, como por exemplo... algo assim: “o Bem vencerá no final”. Claro que poderia ter alguns floreios, mas algo bastante zen, tranqüilo. Mas alguns supõe que para cumprir esse objetivo ele inventou uma estória comprida, cheia de voltas, com gente morrendo pra todo lado, um monte de figuras bem imaginativas e terríveis, que não querem dizer absolutamente nada (ou significam verdades genéricas e comuns), excitando a imaginação das pessoas, de forma que elas suponham que suas figuras tem algum significado especial. Para mim, não faz sentido algum que tenha sido assim. Faz sentido que João tenha sido um verdadeiro profeta. Faz sentido que tenha sido um velho maluco. Mas não faz sentido um Apocalípse como figura genérica da “luta entre o bem e o mal”.
O texto bíblico descreve Judas Iscariotes como uma pessoa egoísta, avaro no sentido original do termo, isto é excessivamente preocupado consigo mesmo. O contrário de generoso, no sentido original do termo, isto é preocupado com coisas mais amplas do que a sua própria pessoa. Da mesma forma são descritos muitos dos fariseus e escribas, e igualmente os saduceus, o partido do alto clero, ao qual pertenciam os mais altos sacerdotes (não os sacerdotes comuns). Mesmo fora da Bíblia, vemos parte dos zelotes (aqueles que dominaram Jerusalém antes da sua queda) sendo descritos pelo historiador judeu Flávio Josefo, como pessoas de má índole, que desprezavam o respeito ao próximo e à Lei do Senhor, egoístas e violentos.
Muitos autores atuais, ao serem confrontados com estas descrições, tem dificuldade em aceita-las. O ponto que une, pelo menos supostamente, estas personagens é seu patriotismo, seu suposto ideal de liberdade do povo, oprimido sob os romanos. Libertários, afirmadores da identidade do povo, revolucionários que desprezam sua própria segurança em razão da identidade nacional e da luta contra a opressão, dizem estes autores. Qualquer descrição que contrarie esta avaliação deve ser um erro ou, talvez, uma fraude. E lá vão os que estão longe e menos informados sobre o contexto, dizerem que vêem melhor do que os que estavam perto.
Falarei primeiro de Judas Iscariotes. Não há informações objetivas, de fontes confiáveis, que confirmem o seu caráter de “revolucionário que visava a libertação do povo de Israel”. Muitos dos que querem fazer crer assim, atribuem também a Yeshua (Jesus), pelo menos no inicio, este objetivo político. Novamente não há nada nas fontes mais antigas que prove isto. Estas afirmações são feitas simplesmente por que os leitores atuais querem formar um quadro da época que se encaixe nos seus esquemas de pensamento. Uma única palavra, para estes, que possa ser usada de forma a significar um Jesus revolucionário, pesa mais que um livro de informações em contrário. Para estes leitores, é mais fácil descrer do testemunho dos antigos do que de seus próprios esquemas mentais. Céticos dos outros, jamais de si mesmos.
Mas vamos supor, apesar de não provado, que o suposto caráter revolucionário de Judas seja verdade. Muitos leitores, ainda na busca de organicidade do próprio pensamento, deduzem daí que a um elemento de generosidade em Judas que não pode combinar de forma alguma com a mesquinharia de receber uma bagatela como preço de uma traição absurda. Da mesma forma, só podem ver uma generosidade fundamental nos religiosos judeus que condenaram o Ungido, pois que tipo de gente se não um generoso lutaria contra a opressão da cultura alienígena? Igualmente todos os zelotes, movidos por ideais os mais altos, liberdade e justiça, seriam a encarnação da generosidade. Todos os citados, ainda que possam ter sido enganados pela aparência, e agido inconscientemente de forma injusta, não podem ter negado o seu direito de serem reconhecidos como pessoas fundamentalmente generosas.
Será?
Examinemos a hipótese de que todo aquele que luta contra um poder maior, ou pensa que luta contra um poder maior (ou assim quer fazem crer), é um generoso. Isto é sempre verdade? Egoísmo, soberba, orgulho, inveja, o ódio por um amor perdido, a lembrança reprimida de um abuso sofrido quando criança, o desejo de aparecer bem perante uma mulher, perante os seus pares, a fuga de uma consciência culpada, a paranóia, a psicopatia, nada disso pode ser o motor da luta? Apenas subsidiariamente, ou talvez como motor principal em poucos casos, dirão alguns.
Será?
Que nos diz a história da luta pela “libertação”? Mais de uma centena de milhões de mortos pela luta por um mundo melhor, só no último século? Quanta injustiça em nome da justiça? Quanta escravidão em nome da liberdade? Quase toda a luta “libertária” acabou sendo um erro. Engano bem intencionado?
Ou fraude?
Tanto mal pode nascer da boa fé? Ou será que a maldade já estava na semente, oculta sob uma capa de boas intenções? A criação de uma burocracia poderosa e controladora, a destruição da liberdade, campos de concentração, tribunais fajutos, genocídios, tudo isto já foi feito em larga escala por quase todos os “libertadores” modernos.
Qual a personalidade de praticamente todos os líderes revolucionários, ativistas, apoiadores? Freqüentemente começam na adolescência. Mas falemos aqui do que entendemos como adolescência. Viajando por lugares do interior, os adolescentes que vejo são pessoas fundamentalmente doces, espantadas ainda com realidades novas que estão conhecendo, alegres, mas às vezes um tanto introspectivos. A maioria dos adolescentes que vejo, principalmente fora do fluxo principal da cultura da mídia, não se encaixam de modo algum no estereótipo do “típico” adolescente pregado pela mídia, aquele que dizem ser o adolescente “normal”, uma pessoa extremamente soberba e arrogante, suposto possuidor de conhecimentos que outros não podem alcançar, membro de uma raça de refundadores da humanidade. Este, um doente, uma criança mimada, é dito o adolescente “certo”, o “verdadeiro”, até mesmo o “compatível com o estado normal do desenvolvimento biológico do ser humano”, mesmo se não for maioria, mesmo se algumas de suas características consideradas mais “típicas” forem fortemente culturais, pouco marcantes em outras épocas ou outras culturas. Pois bem, este estado de soberba personificada, elevada à suposta essência do que é a adolescência, é realmente a própria essência da “personalidade revolucionária” típica (não falo de lideres nativistas de séculos passados, cujo principal interesse era, normalmente, a construção realista de uma nação, não a “implantação de uma utopia”, contradição em termos). Se há uma essência de soberba na mente de tantos “libertadores” (leia suas biografias), não será esta a raiz daquilo que muitos crêem ser uma degenerescência posterior dos “movimentos libertários”, mas que na verdade se manifesta desde o início? Uma raiz de auto-gratificação doentia, de avareza, portanto, naquilo que é anunciado como generosidade. Como a “generosidade” de Ananias e Safira, aparência, hipocrisia (e eles realmente haviam decidido dar do seu patrimônio, da sua luta, sem que nada os obrigasse a isto).
Olhe a sua volta. O leitor não vê isto? Quão freqüentemente você vê pessoas que foram celebradas em verso e prosa como inimigos da ditadura, da corrupção, da vaidade, do engodo contra o povo, se mostrarem os maiores amigos da ditadura, corrupção, vaidade e engodo?
Voltemos aos grupos citados inicialmente, nos quais talvez o leitor não consiga enxergar a avareza e mesquinhez, citados pela Bíblia e por Flávio Josefo. Luta contra um poder externo, defesa da identidade de uma minoria, não são provas de generosidade. Talvez muitos queiram absolver Judas porque, imaginando ver nele um “crítico do sistema”, desejam absolverem a si mesmos. Basta ser um “crítico do sistema” e você terá a sua própria “generosidade” comprovada, não importa se você na prática age com egoísmo em relação ao seu próximo. Mas, que importa? Talvez até mesmo você seja usado como massa de manobra de movimentos que você realmente não entende, cujos objetivos explícitos parecem tão nobres e, portanto, você é um iluminado, um ser superior. Até que o Ungido se manifeste novamente e revele o que há no seu coração. Espero que isto aconteça agora, para o seu arrependimento, e não na Eternidade, para sua vergonha eterna.
Haverá, segundo diz a Bíblia, um dia em que o avarento não poderá mais ser chamado de generoso. Temo que a maioria dos “generosos”, “libertários”, “defensores da justiça”, de hoje em dia, não poderiam sobreviver a tal situação.